terça-feira, 5 de julho de 2011

Injustiça e democracia socioespacial: Estado policial x Estado social.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...) 
Constituição Brasileira, Título II Dos Direitos e Garantias Fundamentais


Todos são iguais perante a lei, mas alguns parecem ser mais iguais do que outros, diante do funcionamento seletivo do Estado brasileiro.

Em várias passagens a constituição brasileira reafirma a justiça e a equidade como garantias maiores da república e da democracia. Entretanto, as paisagens de qualquer cidade brasileira, e o modo como vivem muitos dos seus cidadãos, demonstram o contrário. E provam que, na realidade, o Estado escolhe os artigos constitucionais que irá defender, e quais cidadãos terão seus direitos garantidos, ignorando os demais. Para os mais pobres e que possuem menos recursos (dinheiro e informação, principalmente) a lei torna-se letra morta, e a falta de garantias constitucionais para todos,  como escolha deliberada  no funcionamento do Estado capitalista, favorece injustiças, e  amplia as desigualdades socioespaciais.

As injustiças socioespaciais, decorrentes dessas desigualdades, são mantidas, ano após ano, não pela carência de recursos materiais em um país com grande capacidade de produção de riquezas como o Brasil, hoje um dos mais ricos e promissores do mundo, mas pela forma como essas riquezas  são distribuídas. No mesmo bairro ou rua da maioria das grandes cidades brasileiras, é possível encontrar pessoas vivendo com grande carência das condições mínimas, e outras, no outro extremo, com uma vida repleta de ostentação e desperdício material. São dois mundos distintos e complementares, produtos da mesma realidade e dos mesmos processos,  agudizados nas suas formas mais extremas.


Ex-casa do ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira no Morumbi.
O funcionamento das instituições brasileiras tem grande responsabilidade nesse processo de produção de paisagens com tamanhas desigualdades. Dentre várias instituições e agentes sociais que produzem-nas, podem ser destacadas as empresas e o Estado. 

No caso das empresas, a lógica da competividade orienta suas ações para a busca insana do lucro, através da exploração e acumulação, passando por cima dos cidadãos, e assassinando cotidianamente a moral.  No caso do Estado, o aparelho jurídico-burocrático-policial  serve, principalmente, aos mais ricos, como garantias da impunidade e das condições para manutenção desse processo de exploração dos mais fracos. Deste modo, o aparelho de Estado capitalista coloca-se a serviço da acumulação do capital e, no caso das rendas diferenciadas da terra, em defesa da especulação imobiliária, processo responsável pela produção das desigualdades urbanas.


Prédio com uma piscina por andar com vista para favela de Paraisópolis no Morumbi.
Os sistemas judiciário e policial, cada vez mais, colocam-se a serviço  apenas da defesa da propriedade e,  pelo favorecimento daqueles que sempre puderam mais,  atuam para manter as desigualdades e injustiças socioespaciais.

Um exemplo, dentre muitos, é a forma como o Estado lida com as questões da propriedade, ou melhor, com aqueles que não são proprietários. No caso da falta de moradia,  uma forma que adquire a propriedade no Brasil, é gritante o modo como o Estado ignora os direitos sociais previstos no Artigo 6º da Constituição Brasileira, pelo desmonte da rede de proteção social, e pela criminalização daqueles que, diante do desespero e da falta de alternativas, ocupam imóveis abandonados.

  • Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

A expressão maior das desigualdades, no caso dos carentes por moradia,  é a ausência, também, de todos os outros direitos constitucionais  (saúde, educação, segurança, trabalho digno, lazer....) que deveriam ser garantidos, pelo Estado, a cada cidadão brasileiro.  Ao invés dos preceitos constitucionais, impera a lógica de mercado: só existe moradia, e todo o resto, para quem puder pagar (caro) por ela. Para os outros, os chamados excluídos, restam as sub-opções: submoradias, favelas, autoconstruções, ocupações e, claro, a própria rua. Mas a polícia estará sempre lá, para garantir o controle das populações marginalizadas.

Prédio de antigo hotel abandonado ocupado por famílias sem teto na rua Mauá (centro de São Paulo)

Em um conflito entre dois direitos constitucionais (o de moradia e o de propriedade), o Estado, a priori, já fez sua escolha, revelada na ação do pesado aparato criminal cujo braço mais visível, para os mais carentes, é o sistema policial. Quase sempre, as ações de reintegração de posse, tratadas como casos de polícia e não de política, ocorrem com brutal repressão, destroçando vidas e sonhos já fragilizados pelas duras condições de existência. Não há mais sujeitos e histórias que devam ser considerados e respeitados (idosos, crianças, mulheres, homens), mas apenas proprietários, não proprietários e a truculência da polícia como agente intermediário, para "garantia da lei, da segurança e da ordem". Ordem desigual, como se sabe.

O Estado social é a única instituição capaz de fazer frente às forças e agentes do mercado. Para que ele exista, é necessário um outro Estado no Brasil, que seja capaz de garantir as condições para justiça socioespacial.  O Estado como agente capitalista, como existe hoje, e colocado a serviço do mercado (dos mais ricos, dos proprietários, dos empresários, das classes mais altas, da especulação imobiliária...) serve apenas para a manutenção de injustiças, para continuidade das desigualdades socioespaciais, para promover indignação e revoltas. 

A sociedade brasileira, formada como pluralidade, deve ser considerada em sua totalidade. As classes menos favorecidas, e que constituem a grande força criativa no conjunto da nação, também devem ser contempladas  no funcionamento da república. Este será o caminho para a democracia deixar de ser uma expressão utilizada apenas durante as eleições e campanhas eleitorais, para ser a grande força do cotidiano, o motor da cidadania que garanta melhores condições de vida para todos os brasileiros, sejam quais forem sua classe, status e renda.


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